sexta-feira, 28 de março de 2008

"constaftações"

Tire o véu, amor,
não se afoite
e veja que as estrelas
são aftas que ardem
no céu
da boca da noite.

[j. guedes]


quarta-feira, 26 de março de 2008

diálogo dicotômico em hai cais


"Quando sonho
sou outra.
Inauguro-me".
(Helena Kolody)

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"Quando acordo
é outro dia
que se me põe a bordo:
desbravo-me".

[j. guedes]

segunda-feira, 24 de março de 2008

sábado, 22 de março de 2008


"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

[Clarice Lispector]

sexta-feira, 21 de março de 2008

do pensar

O pensar foi o fruto
da evolução do homem.

Agora, a sua evolução
deve-se ao bom fruto
do pensar?

[j. guedes]

o propósito filosófico

O objetivo principal da filosofia
é persistir no burilamento
das questões
que inquietam
ontologicamente
o ser humano.

[j. guedes]

domingo, 9 de março de 2008

lavras de desejos


Quero te sentir o tempo inteiro
Pelo faro, pelos poros,
Pela língua, pelo falo,
Pelos olhos.

Selo uma singela carta
Com beijos no recheio
E mando pelo Correio

Minha boca em palavras
São lavras de desejos,
Todos eles bem guardados
Sobre o morno travesseiro

Deserto em meus sentidos
Explodem miragens
e suspiros.

Fios percorridos
De suor
Umedecem a noite
Que reboa o pulsar
Do coração apreensivo

Ela me ligou cedo
No meio da semana
Aparou os versos
Em seus lábios
E disse que me ama.

[j. guedes]

sábado, 8 de março de 2008

a memória da felicidade

Existe uma tendência estúpida do espírito a falsificar sem perceber a memória de uma alegria, a transformando na memória de uma felicidade; distorcendo a lembrança de um prazer passado, que na hora foi completamente não-sentimental, ao cobrir essa lembrança com a sentimentalidade da sua nostalgia.

A própria palavra felicidade tem uma conotação infeliz de vaga tristeza, de prazer mesclado de musiquinha triste, que é uma calúnia contra o prazer de fato sentido no passado; um prazer muitas vezes tão pouco sentimental que era só saudável, vigoroso, divertido: um período de dias em que você estava tão longe de se sentir poético quanto de sair voando.

Mas, quando você se lembra desse período de dias, imbecilmente cobre o seu prazer antigo com uma melancoliazinha poética nauseabunda. Não é tanto que você se sinta triste porque o prazer está no passado - é mais que você passa a imaginar o seu prazer antigo, sem perceber a distorção que está fazendo, como já tendo sido, mesmo naquela época, vagamente triste, sentimental, poético - feliz.

[Alexandre Soares]

sexta-feira, 7 de março de 2008

O Menino que Carregava Água na Peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água; o mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira. Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda.Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

[Manoel de Barros]

domingo, 2 de março de 2008

na forma de ser

Um dia a gente perde essa ilusão
de que Deus tem a forma humana
ou que o ser humano tem a forma divina.


Em seguida, as pessoas deixarão de ser rebarbativas
porque passarão a ser apreciadas
nos limites da sua própria condição,
levando um sentido de anedota
a presunção de ser Deus
porque essa posição é frágil
por sua total virtualidade
sobre a insustentável
negação da vitalidade.

[joão guedes]