quinta-feira, 31 de julho de 2008

implicância*

*Conto dedicado a Iraildes, mãe de Emanuela, Rebeca, Renata e Jai.
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Era uma manhã cheia de quentura como as de costume. A evaporação tremeluzia a paisagem; a rotina se prosseguia até a fadiga encostar na gente. Sendo mirado pelo Sol, eu estava bem terminando de picotar uma carga de palma no cocho do curral para o gado comer, quando uma poeirada das grossas se alevantou ao longe, no começo da estrada que vem dá aqui na roça. Fucei com as vistas o horizonte e tive a certificação de que é vinha um carro brilhoso nas carreiras. O roncado do motor já se ouvia a longa distância, de modo que as crianças se enfiaram assombradas para dentro de casa na rapidez de uma chispa e subiram na marquesa perto da janela para espiar a ocasião. Têm uma curiosidade do Cão, esses meninos. A mulher permaneceu lá dentro, fazendo o serviço de casa e cuidando de seu pai já murcho e desdentado. Normalmente ela não aparece para assuntos que eu possa resolver quando estou presente na nossa propriedade.

Assim que me dei por acabado com o serviço diário de alimentação do gado, guardei o facão na bainha, tirando do metal um chiado frio; limpei com a manga da camisa o suor da testa e me recolhi à sombra do juazeiro do lado de fora do curral que fica bem pertinho da nossa morada. Catei do bolso de minha camisa a bagana de cigarro para pitar à medida em que esperava o carro se aproximar. Sem demora, a caminhonete encostou à beira de casa e teve as portas abertas para o apeio dos chegantes. Surgiram dois homens de uma nuvem de poeira ruiva, abanando os braços, tossindo e cuspindo a terra que lhes furtava o oco da boca. O motorista parecia ser o capanga daquele sinhô que, em antes mesmo de dizer “bom dia”, fez raivosamente um comentário do incômodo pelo calor, no que seguidamente me dei por confirmar a causa de sua inquietação balançando a cabeça. Vestido com um chapelão de abas arrebitadas, se arremeteu com o braço esticado p’ra perto de mim e nos cumprimentamos.

Depois que disse o seu nome, Dr. Sidney, indagou a saber como é que eu estava, se eu estava bem e respondi para ele que eu estava na lida que Deus me ofereceu para garantir sobrevivência, pois a dificuldade é o que nunca se acaba. O capanga apeado do outro lado do carro me saudou com a palma da mão perto do rosto, com os dentes encolhidos à boca. Naquele momento ali facultei pela circunspecção. As crianças se desencafifavam aos poucos e iam se ressoltando no vazio do terreiro, mas sem perder a atenção aos visitantes.

Depois de um ligeiro silêncio, Dr. Sidney ralhou novamente contra o calor e pronunciou que queria um pouco d’água para se aliviar da sede. Olhei duro para o menino mais graúdo e ele foi correndo para dentro de casa até sumir detrás das paredes. Voltara num assomo, a passos largos, tratando no entanto de equilibrar o velho caneco de alumínio cheio de água fresca do pote. O doutô ficou a avaliar a condição do caneco assim que o menino lhe repassou às mãos. Na roça a gente tem hábito de dispor um copo perto da moringa p’ra todo mundo usar, n’é? E todo mundo usa sem fazer muxoxos. Vi entonce que aquele sinhô estava com nojo. Apertou os cantos da boca e afiou seus olhos para examinar o caneco com mais apuração. Mas guardou consigo as palavras de ingratidão. Oxe! Ele que desembuchasse qualquer maledicência que dali sairia enxotado debaixo do requeime de meus vitupérios!

O menino, coitado, lhe fitava intrigado, coçando a couraça dura dos cotovelos, azunhando o doutô com os olhos, sem entender aquela cerimônia que se perdurava para tomar um simples caneco com água. Era um sinhô invocado, uma incógnita para o menino. A tensão que o doutor fazia no rosto, por fim, só diminuiu quando ele achou no caneco um cantinho que ele suspeitou ser mais limpo, mais higiênico, livre de imundícies das bocas alheias. Já segurava o caneco fora da asa, enviesado, torto, calculando o tamanho do espaço onde haveria de ser colocada a sua boca a contento. Definitivamente, os lábios murchos dele se prenderam com leveza na borda; com caprichosa lentidão foi entornando a água para o fundo do bucho. O menino então ficou surpreso com a descoberta do doutor e exclamou:

– Ué! Ele bebe água igualzinho ao meu avô!
(João Guedes, 2004)

quinta-feira, 10 de julho de 2008

da perspectiva evolutiva

O que evolui não é propriamente o homem,
mas, sim, as
suas ferramentas e estratégias,
ou seja,
a maneira como ele satisfaz
as suas necessidades e desejos;

Ele, per si, sempre permaneceu
sendo o mesmo:
um complexo espaço cinético
ocupado por paixões e ignorâncias.

[j. guedes]

quarta-feira, 9 de julho de 2008

uma glosa ao filme "otávio e as letras"

Eu assisti recentemente ao filme nacional chamado "Otávio e as Letras", cuja técnica adotada caracteriza-se pela profusão imagética com diálogos rarefeitos, pouco freqüentes. Confere-se em sua estrutura (ab-)lógica um aspecto de trilogia por aventar em seu enfoque espectrográfico a retratação da emergência de manias em decorrência da solidão de 3 pessoas que habitam uma mega e cinzenta cidade: a flagrante paulicéia gris, mas, com sua imensidão colorida de sonhos. Nesse sentido, cada órbita subjetiva funciona baseada em regras determinadas com o objetivo de negar o mal da solidão, mas, ao mesmo tempo, ninguém se abstém de todo à solidão, pois, é nela que se torna possível a capacidade para fluir as imaginações e o encontro fictício de si próprio.

Trailer: